“Posso passar aí?”. “Pode”. Pela primeira vez não nos abraçamos quando nos encontramos.
A cena de “filme de pandemia” onde pessoas usam máscaras e compartilham olhares de desespero enquanto passam por ruas desertas estava completa. A obra inacabada em Amaralina também contribuiu para o cenário apocalíptico.
Os nossos olhares não eram desesperados; eram cansados. Sentamos no chão do hall de entrada do meu prédio, numa parte aberta onde a brisa do mar chegava sem empecilhos.
O céu estava azul. Há dias eu não via a cor do céu. Sentamos afastadas, sem que ela ficasse apertando meu “bracinho gordo” e eu reclamasse e depois caíssemos na gargalhada por conta da minha flacidez.
Por causa do afastamento, os vizinhos do 104 devem ter gostado de escutar os nossos desabafos sobre o não-futuro e os relatos detalhados dos sentimentos confusos em tempos de quarentena.
Se os vizinhos odiaram não fiquei sabendo, então prefiro acreditar que agradamos a audiência porque não precisamos desviar de ovo podre ou ignorar possíveis palavrões. Sem dúvida, foi uma distração na tarde de quinta de isolamento social para quem falou e para quem escutou.
Ela sabe do orgulho que sinto do trabalho que ela faz no hospital, cuidando da emoção das pessoas em tempos tão emocionais. Mas não é só no ambiente de trabalho. Mais cedo, assim como em todo santo dia, ela perguntou: “como você tá?”. Respondi que não estava bem.
Pois depois, enquanto manobrava o carro para sair de minha rua, gritou no tom impositivo tão baiano e tão dela que eu “devia entrar no prédio, que não precisava esperar que ela fosse embora”.
Gritei de volta: “estou olhando o mar”, e era a mais pura verdade. Tomamos cuidado, ficamos afastadas, não colocamos ninguém em risco e ela me fez, depois de muitos dias, ver o céu e ver o mar.