Quando penso no Carnaval

Lembro de poucas fantasias: baiana, havaiana, melindrosa – que os meninos da rua diziam que era de índia por uma única pena cor de rosa do acessório da cabeça, e me deixavam arrasada por não entenderem o quão legal era ser uma melindrosa.

Lembro de bailinhos, confetes e serpentinas. Lembro claramente do gosto de papel dos confetes que eventualmente caíam na minha boca.

Lembro de um vinil, com um trio elétrico rodeado por pessoas na capa, que devia ser de Moraes Moreira e da família Macedo. Sempre, em todo o carnaval, eu acordava com as músicas desse disco tocando em casa.

Lembro de alguns momentos no centro da cidade, acompanhando o movimento das pessoas, sentada nas costas de alguém – provavelmente meu pai que sempre foi alto (um gigante pelo meu olhar na época). E lembro que eu gostava muito do Carnaval, muito mais do que do São João que, apesar dos vestidos quadriculados e dos fogos coloridos, me enchiam de pânico pelos barulhos das bombas e as queimaduras eventuais besuntadas de manteiga que só pioravam a situação.

Quando adolescente, acompanhei o fluxo natural das minhas amigas de escola e passei a frequentar a rua dentro de blocos, vestindo abadás e ‘segura’ por uma corda humana feita de pessoas (em sua imensa maioria negras) que precisavam estar ali, naquela situação, recebendo por noite muito menos o que eu gastava com água mineral e refrigerantes. Hoje eu me culpo: queria ter uma consciência social maior aos 15 anos que me fizesse protestar contra essa segregação moderna.

Foto que, infelizmente, não sei de quem é, mas mostra claramente o absurdo que os blocos 'com corda' fazem, separando brancos de negros no Carnaval da Bahia
Foto que, infelizmente, não sei de quem é, mas mostra claramente o absurdo que os blocos ‘com corda’ fazem, separando brancos de negros no Carnaval da Bahia

Me envergonho mas assumo que, apesar do meu eterno desconforto pela situação, participei durante muitos anos do grupo que podia pagar. Até que cansei. De olhar para os lados e ver os cordeiros como um muro em movimento, das músicas, das pessoas, do aperto, da violência, do assédio em forma de dedadas e tentativas forçadas de contato íntimo (não é fácil ser mulher no Carnaval baiano). Cansei de tudo. Trabalhei durante alguns anos seguidos na cobertura e fui embora. Longe da cidade não senti muita falta.

Mas fui apresentada ao Carnaval sem cordas. Onde você acompanha os trios elétricos que fazem música para quem não paga. Sem grandes apertos – afinal, são milhões de pessoas nas ruas, fazendo curvas, subindo ladeiras… o aperto sempre vai existir – e com uma tranquilidade que me emocionou de forma tal que meu coração foi totalmente capturado pela festa. Festa essa que, ao contrário do que muitos alardeiam, é popular.

Existem os espaços privados e os blocos que não te deixam passar pelas ruas? Existem! Mas também há uma infinidade de possibilidades para aqueles que não podem gastar um centavo e mesmo assim conseguem ver seus ídolos de perto, conseguem conhecer novos artistas, além de dançar e cantar junto com outras milhões de pessoas de diferentes classes sociais que, no dia a dia, levam vidas completamente opostas umas das outras.

Digo isso por experiência própria: é só olhar para os lados em um encontro de trios na Praça Castro Alves para perceber a beleza de estar ao lado de tanta gente diferente, dançando, cantando, se divertindo. Naquele momento, é só o que importa.

É claro que muitas coisas devem mudar. Para mim, a principal delas é a permanência do formato dos blocos. Não deveriam existir. Todos os trios elétricos deveriam ir para as ruas exclusivamente para o folião pipoca. E quem quiser tranquilidade, exclusividade e ar-condiconado, que fique nos camarotes comendo sushi e fugindo do suor.

Sou uma entusiasta do Carnaval da Bahia, que sofre quando está longe e explode de felicidade quando consegue cantar os versos da muita abaixo rodeada pela brisa do mar e por sotaques semelhantes ao meu.

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